Sobre a arte poética e o efeito terapêutico da criação em versos
É importante saber diferenciar as coisas, para nosso bem
O traço mais notório da arteterapia, em qualquer fonte que se olhe, é a subordinação das artes ao trabalho terapêutico. Isso implica abandonar qualquer expectativa de priorizar a qualidade artística em detrimento da expressão psicológica (em termos terapêuticos). Assim, o poeta que não se reconhece como sujeito de seus próprios afetos, ou como autor de suas próprias obras, acaba confundindo uma coisa com outra: ele não sabe onde começa o afeto e onde termina a obra. Ele acredita estar fazendo poesia quando, na verdade, está buscando autorregulação.
Na verdade, e vocês podem confirmar em dez minutos de Instagram, grande parte do trabalho poético ligeiro de hoje em dia nada mais é que autorregulação — assistida e validada — que se beneficia do status da arte, de sua inexorável defesa da liberdade de expressão, enquanto provocação ou leitura da realidade. Em termos mais simples: ninguém vai incomodar uma pessoa que extravasa vida (a sua e a dos outros), se ela faz isso em versos e se chama de poeta.
O primeiro poeminha que escrevi falava de frustrações que eu tinha lá pelos 13 anos de idade e não pode, de modo algum, ser considerado como poema, no sentido integral da coisa. Não era arte. Mas era alguma coisa. Essa mesma coisa está presente em todos os poemas que, hoje em dia, chamamos de “instapoetry”: podem, e devem, ser considerados mais como expressão psicológica de uma tentativa de regulação ou do extravasar típico dos sentimentos (que tende à livre associação) de quem acumula muito, do que necessariamente uma obra de ourivesaria.
Talvez você possa estar lendo isso com incômodo, mas meu objetivo não é uma crítica ou desconsideração do material. É, antes, uma forma de auxiliar as pessoas a produzirem mais daquilo que elas já estão produzindo, só que com um toque de refinamento de acordo com a natureza do material. Talvez vocês queiram produzir arte que seja Arte, em detrimento do sentimento do momento.
Convenhamos, uma escultura dessa não pode ser feita sem que a auto regulação esteja em dia. Na primeira grande dificuldade xingaríamos a estátua e empurraríamos ela ao chão. Ela foi construída em cima de muito choro, garanto.
Por outro lado, e peguemos aqui uma Rupi Kaur de exemplo, alguns poemas parecem menos “poemas” no sentido artístico do texto, e mais expressões do estado psicológico e da cosmovisão do momento, só que quebrada em unidades psicológicas, chamadas de verso:
A primeira coisa que se nota neste tipo de poesia é a sua duração: nunca veremos poemas com grandes períodos frasais e elaborações complexas por páginas e páginas. A maioria deles é sucinta, fala de sentimentos, compara algumas coisas ou afirma algumas coisas. É quase como se estivessem tentando articular sensações tempestuosas do momento, mas de forma direta, aliando geralmente um pensamento simples a um cenário psicológico através do corte dos versos. São pinceladas, por assim dizer, mas pinceladas de impressões e pensamentos que se vão sobrepondo até formar algo que possui sentido afetivo, embora nem sempre lógica estrutural.
Podemos até afirmar: estes poemas nunca são trabalhados para além da primeira tentativa. Basta escrever, e geralmente se pode inferir que os melhores poemas foram produto de um fluxo contínuo e rápido. O poema se perderia, caso precisasse de grande elaboração. Ele precisa ser sintetizado naquele momento, e só naquele momento. Ele é o momento.
Dissequemos o ato:
Enquanto o poema-terapia é escrito, canais são fechados: a pessoa se concentra, senta-se, geralmente pega alguma bebida ou coloca música. Também precisa manusear caneta e papel, ou teclar, ativando a sensorialidade. Foca a memória no próprio sentimento, lê, relê, deixa as palavras formarem-se livremente de acordo com alguma disposição afetiva. Independente do que saia, o próprio esforço empregado é uma meditação terapêutica e alivia a ansiedade tanto quanto rezar um terço.
O poema, claro, não será secundário.
O usufruto, entretanto, é bem diferente daquele que sentimos ao escrever versos criados com finalidade puramente estética: alívio de escrever, alegria de ter terminado, contemplação e orgulho.
O poema de regulação, esse não, é puro usufruto do frenesi que se converte em articulação: usufruímos os dois polos, a bagunça das coisas que sentimos, o fluxo do sentimento ao ser jogado para fora, e a articulação posterior dele. Um dos poemas é como um apêndice emocional do momento, e o outro é peça de ourivesaria, independente porque (se bem feito) perene.
Agora observemos a relação entre os dois polos:
Quem se utiliza do verso como forma de articular matéria-prima “afetiva” faz um bem enorme para si. Um poeta formado, por outro lado, já parte da matéria-prima articulada, para dar forma aos monumentos poéticos. A Divina Comédia não surgiu num rompante e foi escrita em minutos. Ela tem o lugar dela e custou anos da vida de Dante. Por outro lado, não nos convém organizar uma suma teológica sobre o chateamento que sentimos diante de alguma injustiça, de algum sentimento estranho, e está tudo bem ser assim: o desabafo não precisa ser sempre uma tese de doutorado. Mas quando saímos vomitando letras num papel, nos aliviando daquilo que não podemos suportar, estamos dando só o primeiro passo na escrita do poema de arte, da arte enquanto estética. Se você quer ser poeta, isso não será suficiente. E, caso queira, existem caminhos muito bons para o aperfeiçoamento do verso de terapia, do verso de alívio.
É bom saber o sentido da nossa escrita, para que não nos confundamos quanto à finalidade, e não tomemos cargas que não condizem com o processo. Gosto de operar no seguinte viés: quando dizemos para nós mesmos “não é para ser sofrido”, provavelmente estamos escrevendo com o sentimento terapêutico da coisa. Uma pergunta parecida seria: “é para ser perfeito?”. Não, o poema-terapia não precisa e não deve ser perfeito. A arte, por outro lado, nos cobra a máxima realização, mesmo que ao custo de alguns sofrimentos. É quase a diferença entre ficar sem dormir por causa de um poema que precisa ser escrito, e que nos incomoda, e acordar para escrever o poema que nos impede de dormir.
No final, posso resumir em uma experiência bem pessoal: sei a motivação do poema ao criticar qualquer elemento dele. Os poetas que querem ser poetas e gostam de arte ficam de ouvidos atentos e fazem um esforço para corrigir ou trabalhar os elementos que podem ser melhorados, como se fosse um desenho carente de traços firmes. Quem escreve para se articular geralmente se ofende: “você não entendeu meu poema”. Quase sempre a reação é mais visceral, como se fosse um ataque pessoal. Ao meu ver, um ótimo jeito de entender a motivação da pessoa.
Por fim, tenho alguns exercícios (do poema que é terapia) que gostaria de compartilhar com vocês. Vamos lá?
Primeiro Exercício:
Um poema curto que conte a passagem de um sentimento para outro (alegria para raiva) mas sem citar os sentimentos. Você pode se utilizar de experiências e lugares, mas nunca de abstrações engenhosas que deixem claro o sentimento.
Segundo Exercício:
Um poema curto que conte exatamente quem você é, mas pelos objetos que você possui, carrega ou traz na sua história. Você não pode citar espelhos, retratos ou representações de si, apenas objetos.
Terceiro exercício:
Descreva a experiência mais intensa da sua vida, positiva ou negativa, sem floreios, e da forma mais concreta e fria que conseguir, como se fosse um relatório, um texto técnico. Um poema curto deve bastar.
É o suficiente. Ainda voltaremos nestes assuntos.
Brian.
PS: eu postaria mais três textos hoje, só que a enxaqueca me pegou. Ficamos para amanhã.
Não estou enxergando mais a tela. Risos.