Saturno, Absurdo Dervixe
Um guia para a apreciação de uma das mais belas músicas já escritas
Se me perguntarem sobre o que é a peça Saturno, direi que é o peso da vida deixando a alma durante a morte. Mas é adequado que vocês formulem antes suas próprias ideias, então ouçam, e depois voltem aqui:
Dividida em duas grandes seções, Saturno inicia-se no contratempo, algo que não percebemos de imediato, e que só se torna claro quando as melodias em contrabaixo surgem. Há um motivo em ostinato entoado pelas flautas e harpas que demarca a passagem lenta e pesada do tempo. Gravem essa ideia: metade de Saturno é sobre lentidão e peso, transliterada em música como um símbolo de velhice.
Flautas e harpas serão pano de fundo neste motivo temporal (marcado pelos passos lentos de Saturno) enquanto baixos entoam o primeiro tema, que é dobrado, e vai se tornando mais agudo, até alcançar os violoncelos, que recomeçam o tema, junto dos violinos, e então ele se expande e passa para flautas, clarinetes e oboés, cordas novamente, até ser abandonado pelo ostinato inicial.
Os contrabaixos assumem em outro motivo temporal e decrescente, tocado em pizzicato, beliscando as cordas com muita delicadeza, mas também volume. Essa contradição acompanha toda música: o peso temporal da decrepitude ao lado da doçura leve do esvaecimento.
Quando os contrabaixos assumem o ostinato temporal — trazendo um pouco mais de movimento — são precedidos pelos metais abrindo uma variação do mesmo tema, de caráter melódico, que vimos até agora, somado ao diferencial de incluir o mesmo ostinato dos contrabaixos enquanto melodia.
As vozes se desdobram, e metais, madeiras e cordas refazendo o tema até, veja vocês, em contracanto: é possível ouvir a melodia ecoando em tempos diferentes por instrumentos diferentes.
Dois acordes alternam-se com a mesma estrutura temporal do ostinato que iniciou a música, e então os contrabaixos abandonam o tema em pizzicato.
Assumem os metais, a tuba repetindo os contrabaixos, a melodia pesada nos trombones e trompetes.
Os baixos voltam, emulando o caminhar do tempo, quase em passos de elefante, e no contratempo as flautas, escondendo entre elas a melodia nas madeiras, que virarão metais em pouco.
Esse crescendo não é gratuito. Se não prestarmos atenção nele agora, perderemos de vista a estrutura rítmica que tomará conta daqui em diante.
(A divisão entre tempo e contratempo é uma ideia útil para entender como a progressão de Saturno incorpora tempo e contratempo de formas cada vez mais rápidas, com alturas, timbres e acordes diferentes.)
Os metais assumem, e algo inusitado acontece: o tema é quebrado por um movimento sanfonado de harpa e violinos, que se parecem com sinos. É intenso, ansioso, descontrolado. Vocês já ouviram os sinos de igreja? São movimentos assíncronos, mas se isolarmos cada sino o som será tão milimétrico quanto um relógio.
Os metais e o passo de elefante retomam o controle. Mas são novamente interrompidos pelo tintilar. Um baixo faz melodias incompreensíveis ao fundo, e os metais incorporam a melodia sobre o tintilar.
No auge, como qualquer ansiedade, tudo se vai cessando, saturada, e sobram os mesmos motivos em harpa e flautas, e ouvimos aquela mesma melodia indistinguível percorrer as sessões todas da orquestra. A impressão que temos é que o pior passou. A melodia, entretanto, está totalmente definida, eis o fim da primeira grande seção.
"Pois tudo que é findo reclama
direito de ser esquecido"
— A Casa do Carmo de Minas, de Emmanuel Santiago.
E o pior passou.
Agora as harpas e as cordas executam outro tema, doce, e os graves soam a melodia transfigurada: alívio. Tudo se recompõe em serenidade. A melodia finalmente flui e se permite desenvolver.
Esse fluir, percebemos, é acompanhado de uma sobreposição de ritmos mais branda, aguda, de madeiras e a sempre presente harpa, que se fez peso, se fez sino, se faz leveza nos dedos do harpista.
O tempo parece se acelerar, mas não é intenso. Vão transigindo em arpejos, ou melhor, arabescos. Arabescos temperando as melodias todas em uníssono, graves e agudos, médios finalmente.
A melodia sobe, cresce, ganha reforço das cordas, ela toda um êxtase, toda a orquestra no mesmo tema, um tema de repouso, de paz, e num último suspiro os graves puxam a resolução do acorde, uma, duas, três vezes.
E então, como a vida fosse finalmente sono, sonho, descanso, a orquestra se extingue em sua resolução, num último sopro.
Está desfeito o feitiço da vida.
Brian.