Quando a Ficha Cai, a Gente Muda
Às vezes, é um toque, um detalhe, uma ideia, uma pedrinha que chutamos no caminho...
Há uma velha anedota de origem budista:
O Mestre Zen
Um estudante, tomado pela emoção e chorando, implorou ao mestre:
— “Por que há tanto sofrimento?”
O Mestre Zen respondeu:
— “Não existe relação entre as duas coisas”.
Anedotas são verdades possíveis contadas como mentiras jocosas. Servem para nos fazer pensar. Nesta, descobrimos que o sofrimento talvez não tenha sentido: o mestre capta a relação entre o emocional do aluno e suas inquietações.
Duas posturas derivam do enlevo dessa anedota: ou relaxamos, porque o sofrimento não precisa estar proporcionalmente relacionado aos nossos atos — e estamos livres de sofrer desnecessariamente —, ou buscamos dar um sentido a ele, usufruindo algo maior no processo de sofrer.
O Zen-budismo é eficaz em ensinar este tipo de conhecimento, pois apela não ao exemplo técnico, mas a uma história com desfecho paradoxal, contraintuitivo ou exótico. Há um motivo para ser assim, como veremos na seguinte anedota:
A Xícara Mental
Um mestre zen convidou um de seus discípulos para o chá da tarde em sua casa. Os dois conversaram um pouco, e chegou a hora do chá. O mestre começou a servir chá na xícara do discípulo. Mesmo depois que a xícara se encheu, ele continuou servindo.
A xícara, por óbvio, transbordou, e o chá foi se derramando pelo chão.
— “Mestre, o senhor precisa parar de servir. O chá está se derramando, não vai mais para a xícara”.
— “Muito perspicaz de sua parte” — disse o mestre — “O mesmo acontece com você. Se pretende receber meus ensinamentos, precisa primeiro esvaziar sua xícara mental”.
Como toda metáfora só vai até certo ponto, precisamos fazer um pequeno esforço para entender esta: quando estamos muito saturados de uma ideia ou opinião, não conseguimos ir além se não mudarmos o nosso ponto de vista.
A segunda anedota explica enquanto estrutura aquilo que o mestre fez na primeira.
É por isso que o mestre frequentemente dá uma bastonada na cabeça do discípulo. O toque na cuca força uma mudança brusca de opinião, porque a dor sequestra o momento, e o discípulo esquece aquilo que estava pensando, para que uma nova ideia possa se instalar.
(Não é preciso alertá-los de que não devemos sair dando porradas na cabeça das pessoas.)
Curiosamente, este mesmo circuito de força é empregado pelo marketing: escavar uma objeção contraintuitiva que force uma parada no sistema, para plantar ideias no “vácuo” do pensamento (ou do afeto).
O mestre zen o faz para ensinar; o marketing, para prospectar e vender. Se vocês já viram algum story de algum marketeiro/copy que quer ensinar aos especialistas (que são compradores em potencial) a arte de fechar mais negócios, verá que eles seguem um script mais ou menos nessa ordem:
Dor comum,
Quebra de objeções,
Ideias contraintuitivas,
Condução da consciência,
Oferta e fechamento de negócios.
É engraçado pensar que o fluxo parece ser muito semelhante ao ciclo de ansiedade: pensamentos ou antecipações dolorosas, e mais pensamentos tentando acalmar os primeiros, e então ideias ou hipóteses que sintetizem as duas anteriores. A percepção pode ir para uma crise, ou para um apaziguamento que, entretanto, lance mais questões que serão fontes de ansiedades futuras.
Engajamos de um modo ou de outro, e nossa percepção sobre o mundo vira um centro rodopiante ao redor de nós mesmos.
Se não estivermos atentos, alguém capitalizará o momento às nossas custas.
Este fenômeno, um toque abrupto na nossa cuca, acontece muitas vezes durante nossas vidas e, assim como o sofrimento, pode ser sem sentido ou aberto para que nós criemos um sentido sobre ele. Quando nos engajamos nele, o resultado — geralmente — é uma ficha caindo.
Algo que nos faça pensar diferente, qualquer coisa.
Os Mestres Naturais
É como se a verdade estivesse o tempo todo ao nosso redor. Mas ela não encontra realização até que duas coisas ocorram ao mesmo tempo: uma disposição externa (como uma oportunidade ou fato) e uma disposição interna (a xícara mental vazia, por exemplo).
Quando o discípulo procura o mestre, ele já está inquieto. Ele já possui uma disposição externa (talvez por ter percebido alguma tensão insolúvel, como a da pergunta sobre o sofrimento). Falta a disposição interna, que pode até existir, porém em estado de saturação. É neste campo que o mestre passa o arado.
Para as pessoas comuns, sem vocação monástica, são as pessoas ao nosso redor que fazem o papel de mestre. Estes mestres, geralmente, só tiveram outro mestre na vida: a própria vida. Quando ela dá um toque na cuca, nunca é suave.
E então vivemos entre pessoas que repassam dores brutas, umas às outras, disfarçadas de conselhos ou claramente assinaladas como críticas. Junte ao problema nossa natureza: não somos eternos, mas vamos nos desenvolvendo através do tempo. Não estamos, de antemão, prontos.
Quando somos crianças, não possuímos aparato suficiente para compreender os dois parágrafos acima. A dor nos dói como ao discípulo da primeira anedota.
Não conseguimos entender que uma pessoa sobrecarregada despeja sobre nós as verdades que ela mesma não conseguiu depurar — verdades que ela já traz há gerações, talvez.
Crescemos para entender aquilo que o mestre diz: às vezes não há relação entre as duas coisas. E então a ficha cai: mas podemos usar essas verdades, de qualquer modo.
O ciclo de sofrimentos geracionais se quebra ao criarmos um ciclo extra sobre ele: somos discípulos de mestres que são nossos discípulos também. Realizamos, da dor deles, uma dor que poderia ter sido a nossa, se a tivéssemos tomado.
Eis o fluxo comum: a raiva que surge de nosso aviltamento é uma reação justa ao que nos avilta. Atacamos.
Mas… e se devolvêssemos o fluxo aos nossos mestres cotidianos?
— “Você me diz que sou ingrato, e isso me deixa com raiva” — é um bom começo. É melhor que atacar de volta. Mas — “O que aconteceu para que você sinta que as pessoas são tão ingratas contigo?” — é um ponto melhor. Claro: dito com toda elaboração possível, com o tom certo.
Sem que percebamos, estamos o tempo todo dentro de nós, cada vez mais afundados em nós. O diálogo imaginário acima possui o mérito de inverter o fluxo, de sairmos para fora de nós mesmos, nessa zona onde raiva é mais do mesmo, de nós mesmos. É uma ficha caindo, dentre tantas. É o momento em que percebemos que há algo acontecendo para além de nosso umbigo.
A ficha cai quando entendemos que é bom não ser o centro do mundo por uns instantes. O espaço que existe em nós para ser ferido desaparece. As fichas vão caindo, dia após dia, depois dessa primeira.
Mas ela precisa cair, antes de mais nada.
Quando cai, a gente muda.
O que é, afinal, uma ficha caindo? Se as anedotas não foram suficientes, então fiquemos com as explicações técnicas: é a disrupção necessária para que possamos nos reorganizar.
Vivemos em um mundo contemporâneo que, por natureza, suprimiu essa disrupção. Um mundo ininterrupto.
E o que realmente desejamos? Eu, Brian, penso que é apenas uma breve pausa.
Um silêncio que permita à ficha cair. Nada de anestesias ou sucedâneos.
O silêncio da disrupção.
Esse silêncio que o mundo parece fazer força para romper e nos desequilibrar, às vezes sem intenção, às vezes intencionalmente, é o silêncio que nos assusta. O silêncio que é sentido como ameaça e evoca qualquer coisa que o livre de si.
É o silêncio que é preenchido com álcool, sexo, marketing, espiritualismo secular, reels e, veja bem, medo. Não é disso que estamos todos fugindo? De ter que ser o centro do universo o tempo todo. De sermos impelidos a ser o centro de tudo, inclusive de nossas vidas, o tempo todo.
Não encerrarei afirmando — porque afirmar, em nossos dias, também é uma forma de fazer desejar (“Você não vai X enquanto y”, “Passei a vida fazendo 1 enquanto na verdade era 2, vou te contar como”) — mas perguntando: não é sentir-se bem no silêncio, aquilo que procuramos?
Não é retórico.
Tentem me responder, continuamos nos comentários:
Eu quero ouvir vocês.
Brian.