O Torso Arcaico de Apollo
O propósito da vida é ser superado por coisas cada vez mais grandiosas
Estamos em uma sala de exposição, dentro de um museu. Nós somos observadores de alguém que fala diretamente a nós sobre uma experiência que todos já tivemos alguma vez. Essa experiência, sabemos, é a suspensão estética. É a sensação sublime de ficarmos pasmos diante de tanta beleza, ao ponto de sermos impulsionados para um momento além do espaço tempo. Este momento é o poema.
O poema
Wir kannten nicht sein unerhörtes Haupt,
darin die Augenäpfel reiften. Aber
sein Torso glüht noch wie ein Kandelaber,
in dem sein Schauen, nur zurückgeschraubt,
sich hält und glänzt. Sonst könnte nicht der Bug
der Brust dich blenden, und im leisen Drehen
der Lenden könnte nicht ein Lächeln gehen
zu jener Mitte, die die Zeugung trug.
Sonst stünde dieser Stein entstellt und kurz
unter der Schultern durchsichtigem Sturz
und flimmerte nicht so wie Raubtierfelle
Und bräche nicht aus allen seinen Rändern
aus wie ein Stern: denn da ist keine Stelle,
die dich nicht sieht. Du mußt dein Leben ändern.
A tradução
Não conhecemos sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam. Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado
Detém-se e brilha. Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.
De outro modo erguer-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros
E não tremeria assim, como pele selvagem.
E nem explodiria para além de todas as suas fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
Que não te mire: Precisas mudar de vida.
(Trad. Mário Faustino)
O poema pelo poema
Camadas e camadas de significado desdobrando-se tal qual uma boneca russa, é assim que podemos ler O Torso. Dos poemas da modernidade, Torso é o segundo daquela série começada em Ozymandias. Reparem: toda trilogia de três possui um final. Mas vocês ainda não conhecerão o terceiro poema. É um mistério, igual ao restante dessa escultura famosa:
Não conhecemos sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam.
Há pessoas que conhecemos e que nos compram pelas mais diversas coisas: algumas pelo jeito fácil de amar, outras pelo esforço incansável, poucas pelo sorriso, quase nenhuma pelo olhar. O olhar, fruta madura que nos mira, é o que falta neste torso, e que nos começa a seduzir da mesma forma que Shelley fez com Ozymandias: nossa percepção parte daquilo que não vemos. Quão frutífera não teria sido a mira de Apolo, patrono da música e da poesia, da metáfora de ver ― que na arte se imortaliza ― e de preservar aquilo que de outro modo se perderia? Rilke era um admirador devotado da obra de Cezanne, aquele das naturezas mortas, e podemos até imaginar o sentido de
”darin die Augenäpfel reiften” vendo as obras do pintor:
É certo que a composição de palavras no alemão permite este tipo de aglutinação (Augenäpfel), que é primal na formação da linguagem de qualquer povo: primeiro vamos aglutinando, extraindo sentindo do empréstimo de palavras, e então a língua começa a nascer junto da metáfora. O que é esta cabeça que falta? É também árvore, é também fruto. A mente dos poetas é fértil, o olhar dos poetas amadurece a coisa vista, brilha igual fruta madura.
Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
O diabo nos caça pelos detalhes, e quando é dito que “nós” não vemos, entendemos que o eu lírico nos toma pela mão, nos chama para ver junto dele as impressões tão radiantes que ele não quer guardar apenas para si. É um eu lírico generoso, que não admite que a beleza morra com ele. Este eu lírico, representante da essência de um Rilke que já era, na época, secretário de Rodin (da estátua ‘o pensador’), vê ainda o brilho interno daquilo que materialmente resta de Apolo: então aparece o torso.
E a escolha de ‘candelabro’ não é fortuita. Algumas traduções trazem a palavra lâmpada, que considero infeliz: uma vela queima conquanto haja parafina, e a associação imagética do branco marmóreo de uma vela, cuja cabeça arde em chamas, que também relembra os versos de ‘olho de maçãs maduras’, e reforça o brilho interno, e refaz o próprio movimento do olhar, que desce pela estátua tanto quando a chama desce pelo pavio. É interessante notar o uso da cavalgadura em ‘aber’ (mas), que no verso seguinte propõe uma mudança substancial no poema: quero reiterar que o candelabro é, de fato, um candelabro. Entretanto sabemos que os antigos austríacos e alemães iluminavam suas ruas com este kandelaber:
E as ruas e os parques (com velas ou lampiões) viam um fenômeno curioso, que os falantes nativos do alemão captam de primeira no poema: a sombra da vela amplifica-se mesmo quando sua luz se reduz. E os artistas de potência titânica jogam sobre nós as sombras da arte e da cultura, projetam sobre nós um espaço que nos falta, aquilo que se obscurece geração por geração, e que somos convidados a manter, jogando combustível no candelabro, para que a próxima geração continue enxergando. Este é o significado do torso, do tronco, da estrutura que é observada por nós, que nos observa, que vela por nós.
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado
Detém-se e brilha.
Confesso que este poema, exaustivamente traduzido em inglês, fora pouco explorado em português. Permitam-me acrescentar mais um idioma:
Archaic Torso of Apollo (por Stephen Mitchell)
We cannot know his legendary head
with eyes like ripening fruit. And yet his torso
is still suffused with brilliance from inside,
like a lamp, in which his gaze, now turned to low,
gleams in all its power. Otherwise
the curved breast could not dazzle you so, nor could
a smile run through the placid hips and thighs
to that dark center where procreation flared.
Otherwise this stone would seem defaced
beneath the translucent cascade of the shoulders
and would not glisten like a wild beast's fur:
would not, from all the borders of itself,
burst like a star: for here there is no place
that does not see you. You must change your life.
Vocês conseguem ler, certo? Vamos lá:
in which his gaze, now turned to low, gleams in all its power
De todo modo, ainda há brilho neste deus decapitado. E este brilho é tão poderoso que imbui nas linhas talhadas em mármore certa vida, adquirem outra forma imagética, que vai se transformando da luz apolínea para um sentido mais dionisíaco:
Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.
ou
Otherwise
the curved breast could not dazzle you so, nor could
a smile run through the placid hips and thighs
to that dark center where procreation flared.
O efeito da luz interna, tornada literal, agora produz aquelas sombras de que falávamos quando víamos o candelabro (o termo correto, que ninguém usou em português ainda é ‘chandelier’), e que transformam os mamilos em olhos, os oblíquos em sorriso. Literalmente podemos entender, em um sentido muito material, que a luz da exposição, iluminando a estátua, cria novas formas pela sombra. Se formos avançar até os limites platônicos das formas, o dionisíaco não sobrevive sem o apolíneo, nem o apolíneo cria as formas sem o dionisíaco. É uma unidade dialética. Se repararmos, entretanto, a forma como as cavalgaduras percorrem as estruturas do soneto, veremos que Rilke ultrapassa a barreira das premissas menores e maiores do soneto, as conclusões menores e maiores também. Ele sabe que a unidade das coisas não se separa facilmente, está toda ela mesma, em si, mesclada. E traz isso para o verso. E o verso de ouro surge, numa paulada, para além de tudo que fora mostrado. Chegaremos lá. Observem este trecho da tradução de Karlos Rischbieter:
Senão o leve reflexo
da curva do seu peito não te cegaria,
nem o sorrir, no giro dos quadris, iria
correr para esse centro que portava o sexo.
Nos coloquemos em outra posição, agora de amantes observando a amada, mas também do escultor enamorado por sua obra. A forma como a curva do peito fora esculpida, também a modelagem clássica dos quadris, e o direcionamento do olhar que escorre pela geografia do corpo, tudo nos leva ao ponto em que, na estátua, não há o que se observar: fica então, para nosso imaginário, completar aquilo que se oculta. O poeta não se preocupa, através de seu eu lírico, em interpretar para nós o que é visto. Ele apenas contempla. Eis o fundamento da suspensão estética, neste caso, e em sua reverberação para as esferas mais amplas e universais de toda arte: o real não é alcançado pela palavra, e poucos percebem que o poema, mesmo sendo palavra, não a utiliza como se utilizam os técnicos (como símbolo arbitrário e intermediário entre o emissor e o objeto) ― o real objeto da poesia é o real ― aquilo que não se simboliza, não se explica, está aquém do reino da palavra, mesmo representado, simbolizado por ela. É, por assim dizer, a experiência imediata que a palavra proporciona para nos fazer reverberar com a experiência imediata do real. Toda palavra falha quando esquece-se de que ela é, por ela mesma, o preenchimento de um vazio que não se explica. A suspensão estética nos tira do ordinário e nos une ao sublime objeto do real. Usufruto total, pleno, da eternidade em que o tempo deixa de correr. Palavras poéticas são, de certo modo, apenas amplificadoras de sinais. São como as torres que vemos repetir os sinais, levá-los para muito mais longe. Os grandes poetas brincam e criam no choque das ondas. Os poetas usam palavras para fazer nascer, reverberar, existir em nós, fazer surgir uma própria outra realidade, mas também a mesma que sentimos, aquela indizível. Rilke toma a força que está presente neste torso frio, de pedra, imitação daquilo que teríamos projetado de nosso sentimento de vida, de arte, de força em viver pelo belo, e a amplifica para nós, que percebemos o deus no torso, como sendo nós mesmos, parte do torso. Ele toma para si, este eu-lírico, a força bipolar do torso. E nos mostra, enquanto comentário do torso, aquilo que projetamos nele. Ele mostra tudo aquilo que o torso teria sido, tudo o que ainda é: tudo o que somos, tudo o que poderemos ser.
De outro modo erguer-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros
E não tremeria assim, como pele selvagem.
Aqui começamos a perceber algo curioso: ao mesmo tempo que em certos trechos há uma unidade metafórica, no todo, parte por parte, as imagens são apenas impressões desconexas, ainda que observadas momento-a-momento. A pedra breve e mutilada é, através da mão do escultor e dos olhos do poeta, revivida. A queda translúcida dos ombros, a pele selvagem, estes arremedos, tentativas de aproximação sucessiva do objeto, não comparam os materiais de que são feitas as seções da estátua, mas as energias que remetem àquilo que originou a criação artística. A pele de fera que o mármore parece recriar, pelos olhos do poeta, é a própria vitalidade humana que fora um dia projetada nos deuses eternos. A arte é, por excelência, o melhor meio de se dar valor duradouro ao efêmero. O poema transforma os homens em deuses. É a poesia que nos deixa reestabelecer, dos deuses, o que há de humanidade em nós. Borges captou isso muito bem em:
Somos o tempo. Somos a famosa
parábola de Heráclito, o obscuro.
Somos a água, não o diamante duro,
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos aquele grego
que se olha no rio. Seu semblante
incerto se espelha na água mutante,
no cristal que espelha o fogo tropego.
Somos o vão rio predestinado,
rumo ao mar. Pelas sombras cercado.
Tudo nos diz adeus, tudo nos deixa.
A memória nos imprime sua moeda.
E no entanto há algo que se queda
e no entanto há algo que se queixa.
E a arte restitui este bocado.
E nem explodiria para além de todas as suas fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
Que não te mire: Precisas mudar de vida.
A onisciência deste deus antigo e fraturado tanto brilha que nos observa por todos os pontos. Explodir feito uma estrela é reiterar o caráter de luz de Apolo, também o deus do sol. Somos colocados diante da luz. O Deus do sol possui ramificações e referências por todos os povos antigos. Entre os egípcios nós tínhamos o sol por ele mesmo, soberbamente representado por Philip Glass em sua obra Akhnaten, com essa montagem realmente divina, pela Metropolitan Opera:
E nem explodiria para além de todas as suas fronteiras
Tal como uma estrela.
É só na poesia que as coisas acontecem como acontecem. Estrelas não explodem todos os dias. Nem a ordem das metáforas que vemos são realmente cotidianas. O espaço do efêmero é, ao seu próprio modo, o espaço do raro, do único, do incomum. Todas as imagens do poema, mesmo fraturadas, são captadas pelos olhos de alguém que não possui nenhum compromisso com a explicação, apenas com a mostra da realidade como é. E esta é bem a natureza da arte. Não se trata de traduzir a condição humana, mas de nos fazer viver junto dela o que ela é. Poemas não são imitações da realidade. São recriações. Por isso é tão difícil traduzir um poema. Vamos entrar com os dois pés em águas perigosíssimas: o verdadeiro poema contém em si uma lição que poucos percebem: às vezes, quando alteramos a aparência, a própria coisa que está por trás dela desaparece. Aparência cria essência. Não me fuzilem. É uma ideia perigosa para se analisar e se refutar, não suportaríamos conviver com ela. Precisa estar errada. Risos.
Du mußt dein Leben ändern.
Tu precisas mudar tua vida (já)
As ruínas de uma estátua decapitada emanam uma presença generosa, vibrante, explosiva. Ela, quebrada, possui mais vida que nós. Estamos inteiros, mas degenerados, de rosto visível, mas pálido e apagado. Estamos pior que o torso retorcido de Apolo. Nós, agora que sabemos do que se trata o poema, não temos outra escolha. Quem foi tocado pela beleza não pode voltar a ser o que era antes. Vocês querem mesmo partir um dia sem deixar peso, luz ou sombra, pelo chão que pisaram?
Não.
Vocês foram tocados pela beleza, que é a eternidade do efêmero.
Tu sabes: precisas mudar tua vida. Acaba antes do que a gente pensa.
Agora tu te levantas, e vive.
Brian.
PS: não estou satisfeito. Parece que ainda falta metade.
Dedicado ao Caio Andrade, nosso Homem de Letras.