Já aos 18 anos, Cecília Meireles apresentava ao público sua primeira obra-prima: Espectros. Contudo, uma obra-prima questionável. A própria autora abandonaria mais tarde essa publicação inicial, que muitos poetas posteriores consideraram carente de “valor poético”, motivo pelo qual o livro não se tornou tão conhecido pelas gerações posteriores.
Essa recepção crítica, longe de ser excepcional, reflete um debate maior e ainda não resolvido: o valor da arte, suas definições e seus limites. As antigas escolas literárias e artísticas foram sendo postas em xeque, e seus dogmas foram sendo ignorados ou esquecidos. Fenômeno que se tornou um certo traço característico de coletividades intelectuais artísticas quando, ao almejarem a renovação, passaram a rejeitar o que veio antes, sem absorvê-lo. Fadaram-se a redescobrir a roda que negavam, e a rejeitarem novamente, porque se tratava de uma roda: um eterno retorno. Hoje vivem em dissonância cognitiva constante.
O problema desse tipo de postura está na falta de dialética. Toda inovação, para ser efetiva, precisa realizar-se em diálogo com aquilo que a antecedeu — transformando-se em uma antítese que, ao se consolidar, gera uma síntese, o próximo passo para a nova geração.
É pensamento óbvio. Quando esse movimento não ocorre, o resultado não é renovação, mas pura negação. Os frutos da negação não produzem algo sustentável, e inevitavelmente voltam-se contra si mesmos, dissolvendo-se no tempo em mais cismas e correntes fragmentárias.
Daí vemos o absoluto estado de caos dos paradigmas de arte atuais. Um ímpeto extremo em apontar “a velha arte burguesa e maléfica” em detalhes, e uma total falta de critérios em distinguir ou valorar coisas simples na própria arte contemporânea.
Mas este texto não é sobre teoria da crítica literária (ou da cultura dos poetas). É a introdução de uma análise, e não qualquer análise: uma observação que sirva aos escritores, aos poetas que querem, de fato, fazer boa poesia. A todos aqueles que, não rejeitando as bases e tradições, querem inovar e produzir coisas novas, coisas belas. É um texto para poetas, embora outros possam se beneficiar.
Pensamos em movimento contínuo: conservação é a ponta de um fio que tem, em seu outro lado, a revolução. Juntas, devem funcionar como um nó.
Mas, primeiro, é preciso entender a particularidade do fio. Então, para irmos nos aclimatando, vamos ler um poema e entender o que ele esconde, o que ele mostra… fio a fio.
Leiam várias vezes em voz alta. Se tiverem dificuldade, acompanhem a gravação da declamação do poema.
Neroniano, de Cecília Meireles
Roma incendeia-se. Em lufadas passa o fumo. Estala o fogo. E ouve-se a bulha longínqua dos que fogem à desgraça, às ruínas de que o incêndio Roma entulha. E, enquanto dentre as nuvens de fumaça espessa, cada efêmera faúlha do fogo se desprende e gira e esvoaça e atinge aos céus, qual rutilante agulha, no cesáreo terraço debruçado, Nero, insensato, ao peito as sonorosas cordas da lira, satisfeito, aperta. E – através da esmeralda vil – coroado de mirto, de verbenas e de rosas, espreita Roma a arder, rubra e deserta...
O som
Essa exposição que trago a vocês não é nova. Desde 2021, venho comentando este poema nos meus antigos canais, entre amigos, em oficinas. Creio que até o pessoal da Logopéia tenha feito uma análise do poema no site deles (se acharem, tragam aqui que marco eles). Foram, na época, os primeiros alunos a ouvirem esses comentários, dentre tantos outros que os seguiram:
Antes de ser significado, toda palavra é som. E todo som, arbitrário ou não, vai se congregando em unidades silábicas, de palavras, frases e versos. Ainda hoje rimos da brincadeira verbal ao constatar que “tudo junto” se escreve separado e “separado” se escreve tudo junto. Botamos as calças, mas calçamos as botas.
Há, em cada palavra, uma essência que reverbera junto das outras, como um código sensorial, uma imagem sonora. Se meditarmos tempo suficiente em cada palavra, veremos que as melhores delas possuem ao menos uma partícula que alude simbolicamente e sonoramente ao elemento atribuído. “Serpente” é uma palavra muito mais próxima do animal do que a palavra “cobra”. Não preciso explicar, vocês já sabem, intuitivamente.
Vocês, poetas, se não meditarem sobre o som das palavras, acabarão usando palavras que podem até significar perfeitamente aquilo que desejam, mas que falham num nível pré-consciente: o caráter melopéico.
Roma incendeia-se. Em lufadas passa o fumo. Estala o fogo.
Se separarmos cada palavra, não teremos grande indício de uma cena auditiva: incêndio, lufada, fumo, estalar, fogo. Mesmo que as juntemos, não é garantia de que grande coisa aconteça:
Vi Roma incendiar-se em mil lufadas, e o fumo ia soltando-se em borrascas, pilares crepitando entre as chamas.
Os três versos acima em nada se parecem com o original, mas trazem quase os mesmos elementos. Ainda assim, são inferiores. O som é genérico, e qualquer pessoa que sabe contar até dez sabe escrever algo parecido.
Só Neroniano é Neroniano.
Três são as camadas de sonoridade que o poema de Cecília traz, perfeitamente trabalhadas: a camada do metro e da cavalgadura, a camada da musicalidade e acentuação, e a camada inerente do som combinatório das palavras.
Trata-se de um soneto escrito em decassílabos cavalgados, com períodos simples e compostos que ultrapassam o limite do verso metrificado, estendendo-se aos seguintes.
Roma incendeia-se. Em lufadas passa o fumo. Estala o fogo. E ouve-se a bulha longínqua dos que fogem à desgraça, às ruínas de que o incêndio Roma entulha.
A pontuação não é gratuita, e cada ponto exige pausas específicas que dão silêncio suficiente para que cada período faça seu efeito.
Roma incendeia-se Em lufadas passa o fumo Estala o fogo E ouve-se a bulha longínqua dos que fogem à desgraça às ruínas de que o incêndio Roma entulha
O jogo de aliterações encadeia os ritmos com palavras que fazem barulho de coisas.
Em lufadas passa o fumo. Estala o fogo. E ouve-se a bulha longínqua dos que fogem à desgraça
Aliterações em F e S produzem um som robusto, entretanto encadeado, que quase nos faz ver os nimbos de fumaça e o céu todo escuro. Então, “estala” o fogo, e podemos ouvir o movimento da crepitação nesse estalar (produzido pelos fonemas plosivos), seguido da própria palavra "fogo", que, cheia de si, parece imitar o som do ar queimando e consumindo tudo, sílabas longas que imitam a combustão.
A “bulha” é adjetivada com uma palavra que, de todas vistas até agora, é a mais longa e cheia, e nos distancia da cena inicial vista: é estereoscópica. A palavra “desgraça” coroa a estrofe.
Reparem:
O poema inteiro é composto sobre esses três pilares. Vejo os poetas iniciantes caírem no conto da inspiração, como se todo o poema devesse decantar do universo direto sobre suas cabeças, algo da graça divina; e, por isso mesmo, os mesmos poetas acabam agindo como se não precisassem imaginar o poema ou corrigi-lo constantemente até chegarem em um arranjo ajustado, como o mármore, em que nada mais se pode tirar.
O Direcionamento de Olhar
Quero que façam um exercício. Decorem o trecho abaixo e repitam para vocês, de olhos fechados:
E, enquanto dentre as nuvens de fumaça espessa, cada efêmera faúlha do fogo se desprende e gira e esvoaça e atinge aos céus, qual rutilante agulha,
Notemos certas palavras: dentre, espessa, desprender, girar, esvoaçar, atingir. Fora as duas primeiras, é uma estrofe rica em verbos. Seguindo a lógica da estrofe anterior, podemos ver em “efêmera faúlha do fogo” as imagens sonoras, mas também um movimento especial que nos faz acompanhar com os olhos a movimentação desse incêndio. É um trecho todo de intermédio, que nos conduz ao personagem principal:
no cesáreo terraço debruçado, Nero, insensato, ao peito as sonorosas cordas da lira, satisfeito, aperta.
Insensato, aqui, não se trata de um adjetivo que minora o personagem, mas de uma constatação real: Nero não é sensível ao ambiente do qual faz parte. As cordas da lira, estando próximas ao coração, não produzem nenhum efeito nele.
É insensato porque nem o horror do incêndio nem a alegria da música o afetam. É impossível alguém estar satisfeito numa situação dessas. Ele é apresentado a nós como um louco, um psicótico, um psicopata.
Este é o detalhe do bom uso do adjetivo: insensato, aquele que tem a característica da sensação negada a si. E não há como discordar: nada fora o afeta, e nada dentro o comove. A palavra “satisfeito”, aqui, não carrega mais peso do que o sorriso de um idiota.
E – através da esmeralda vil – coroado de mirto, de verbenas e de rosas, espreita Roma a arder, rubra e deserta...
A esmeralda vil tem muitos significados; deixo para a interpretação de vocês. O coroar pelas ervas alude a Cristo (ele mesmo, Nero, supostamente identificado como o anticristo por alguns estudiosos), aos reis magos, mas também se conecta com o poema que o antecede no livro Espectros.
Espreitar Roma arder, rubra e deserta, não é só uma imagem final; é a constatação de que ele é insensato. Roma não está deserta; é ele que não tem capacidade de se conectar com mais nada. O poema está nos olhos do Eu-Lírico, que se confunde com o personagem: Roma está cheia de gente sendo consumida por um incêndio, vigiadas por uma pessoa que não se consome nem de consciência. E acaba por aqui.
Ao fim, somos deixados como que diante de um curta-metragem, mas sem a piedade, apenas imersos no terror.
Leiam novamente, e novamente.
Brian.
Recomendações:
Cecília Meireles, Obra Completa
Você quer ser poeta mesmo?
Então você realmente precisará de toda ajuda possível.
Por sorte, você não está sozinho.
O feitio artístico, sobretudo o literário, requer um ambiente que seja, ao mesmo tempo, crítico e despretensioso — uma combinação hoje tão rara quanto duas pessoas de espectros políticos diametralmente opostos se entendendo numa conversa amigável. Quando temos um, geralmente perdemos o outro. Por experiência própria: quase nunca há um meio-termo sensato.
Por que isso é um problema?
Ambientes excessivamente críticos formam artistas desesperançosos e neuróticos — muitas vezes incapazes de avaliar com precisão o próprio trabalho.
Ambientes acríticos formam artistas mimados, acostumados a ouvir nada além da gritaria ególatra que em algum momento irrompe em todos nós.
Nenhum desses ambientes é capaz de criar qualquer artista sério. Ponto. Se algum prospera, é mais pela força (ou pela sorte) de saber lidar com as exaustivas séries de tentativa e erro.
Essa é a realidade de quase toda a classe artística brasileira, abandonada aos ventos. Se algum artista prospera, se algum artista ousa romper a barreira da mediocridade — mantendo-se humilde o suficiente para encarar o mínimo de julgamento desfavorável à própria criação —, é mais por uma boa estrutura pessoal, pelos próprios esforços concentrados em sair do nosso ambiente cultural e social, que praticamente conspira contra quem quer que ouse pisar fora da borda.
Desculpem-me, mas alguém precisa dizer isto: a ideia do artista sofredor, destinado a transcender toda a adversidade pelo puro amor à arte, não passa de uma fantasia.
Essa romantização cria uma fonte de sofrimento para o artista, que estará sozinho, sem referências robustas, perdido, sujeito a inevitáveis comparações com todos os outros. E o pior: iludido — seja pela ideia de que o próprio trabalho não tem valor algum, seja pela autoafirmação histérica e ressentida, travestida de expressão artística.
Sanar este problema e desenvolver este ambiente é o trabalho que tomei para mim. Porque não o tive e porque só pude proporcioná-lo — muito tardiamente — a mim e aos meus amigos de ofício mais próximos.
Por isso, criei minha oficina e já ministrei algumas mini-oficinas. A Oficina será reaberta em breve. Ainda não a lancei publicamente porque meu objetivo é oferecer a melhor experiência poética possível. Boas criações exigem tempo, e a pressa nunca é amiga da boa arte.
Sei que muitos de vocês estão ansiosos para aperfeiçoar sua escrita. Por isso, disponibilizei as gravações das mini-oficinas, com cerca de 12 horas de conteúdo. Se o seu desejo é realmente se tornar um poeta, este é, sem dúvida, o melhor investimento que você pode fazer agora.