Instruções para não apanhar da vida: um pequeno manual de produtividade
“Prometer para amanhã vale menos que tentar hoje” ― Provérbio africano
Este foi o primeiro texto que escrevi, na época do Medium, e um seguidor do Arte do Verso pediu para que eu o repostasse, então aqui está!
Lucas Lyra de Souza, essa é pra você:
Um esquema de pirâmide
Alguém, em algum lugar, acordou perto das quatro da manhã, tomou um banho gelado e fez o primeiro café do dia. Em seguida, começou a estudar, separando o tempo em períodos de cinquenta minutos, descansando dez e fechando uma hora. Ao lado dele, um relógio desses de cozinha, em formato de tomate, marcava cada período de estudo: é o método Pomodoro, mundialmente conhecido. Quando o relógio maior bateu nove da manhã, ele já havia feito mais do que 96% das pessoas que conhecemos. Tomou outro café, foi para a academia e, após uma ducha rápida, foi trabalhar.
Você, entretanto, acordou às nove e dez, com o corpo pesado, e comeu uma pizza de ontem com uma coquinha gelada. Ligou o computador e jogou algum MMORPG. Se deu conta de que é uma sexta-feira, mas está tranquilo, pois não trabalha durante as manhãs.
Veja, não estou dizendo que o primeiro caso é correto, e nem que o segundo é errado (embora vocês possam concluir qual parece menos problemático no longo prazo). Só estou apontando para duas situações comuns que vemos e, se a distribuição em pirâmide é verdadeira, é mais provável que você se identifique com o segundo caso do que com o primeiro. A pergunta a se fazer aqui é: os dois estão apreciando a própria rotina?
Aquele que segue uma rotina, faz exatamente o quê? E será que rotinas podem realmente ser apreciadas? É preciso realmente apreciar uma rotina, ou podemos nos desligar e fazer o que é necessário, pensando sempre que ‘não é para ser legal mesmo’?
O problema das rotinas autoimpostas
“Todas as doutrinas, todas as escolas, todas as revoltas, só um tempo”
― Charles de Gaule
É impossível não ter uma rotina. Por mais que tentemos, nosso organismo tende ao conforto dos ciclos, e toda resistência é penosa — mas não inútil. Isso significa que vivemos dentro de períodos controlados pela oscilação entre noite e dia, e não podemos escapar infinitamente, sob risco de prejudicar o organismo.
A biologia é muito eficaz, já que criou um sistema de captação de luz para se adaptar ao ciclo noite/dia, que começa com nossos olhos e termina num centro de distribuição de hormônios do sono. No meio do caminho, há um almoxarifado chamado de 'núcleo supraquiasmático':
Esse camarada que está situado no hipotálamo medial, como podem ver pela foto, envia sinais para a glândula pineal, que por sua vez secreta melatonina, o hormônio responsável por regular o ciclo de sono. Sem entrar em detalhes neurobiológicos mais profundos, é basicamente por meio dele que regulamos nosso ciclo de noite e de dia.
(Se você quer saber mais sobre a melatonina, encontrará um documento detalhado em: https://www.endocrino.org.br/media/uploads/PDFs/posicionamento_sobre_melatonina_sbem.pdf )
Caso o núcleo supraquiasmático sofra alguma lesão, perdemos o controle sobre os ciclos. É catastrófico. Uma pessoa nessa situação não consegue sobreviver muito tempo.
Pois bem: mesmo os mais desregrados em termos de hábitos possuem um relógio interno de noite e de dia. Embora ele possa ser intencionalmente desregulado pelos vícios diários (como a exposição à luz em horários contrários aos da natureza, como a luz azul do celular durante a madrugada), isso não muda o fato de que nosso relógio está sempre fazendo força para funcionar de forma adequada e no tempo certo
O que acontece é que enquanto ele luta para ser ‘normal’, nós acabamos atrapalhando o trabalho, dando estímulos enganosos a ele. O estímulo mais enganoso que podemos dar ao nosso cérebro é a perversão do ciclo de noite e de dia, que no final das contas se resume à quantidade de luz que ‘consumimos’ fora de hora.
E isso é bem claro: quanto mais abusamos do nosso relógio interno, mais prejudicamos o restante do corpo.
Para que isso não aconteça, vamos entender o que é o nosso mundo e como ele se transformou desde que descemos das árvores (ou desde que Eva comeu a maçã):
Fato é que o ritmo de vida do homem moderno em nada se parece com o ritmo de vida dos antigos. Primeiramente, vamos observar o nome que o nosso relógio dá às horas: doze horas divididas em dois hemisférios chamados de AM e PM (do latim: ante meridiem e post meridiem, ou ‘antes do meio dia e depois do meio dia’). Do nascer do sol até o meio dia, são seis horas. E do meio dia até o pôr do sol, são mais seis. Este é o período de vigília do nosso organismo. Quando o sol nasce, nossos olhos captam luz e quando ele se põe, o núcleo supraquiasmático começa a enviar os primeiros sinais da transição para a secreção de melatonina em quantidades diferentes.
Quem funciona bem, funciona dentro da própria natureza.
Agora, reparem: o nosso meio dia já não possui mais a medida exata da metade do dia. E nosso ciclo de vigília plena não possui mais doze horas. Pior ainda: nosso meio dia acontece próximo do pôr do sol. O mundo ultrapassou a natureza, não sem risco. O resultado é que nosso corpo funciona como um computador rodando um programa acima de suas configurações — superaquecido — em overclock.
A verdade é que quando a rotina que desejamos seguir está além da nossa configuração ou nossa configuração está muito bagunçada, ela não irá funcionar corretamente na maioria dos casos.
Primeira dica: reorganize os ciclos de sono, ou a produtividade será afetada pelo overclock. Você terá mais chances de acordar bem se dormir melhor e na hora certa.
Como fazer isso? Diminua toda a luz excessiva e azulada dentro de casa após as seis da tarde. Existem aplicativos que medem a quantidade de luz com a câmera do celular. Abaixo de 90 unidades após o pôr-do-sol é o ideal. Reduza a exposição à luz azul e opte por tons mais avermelhados. Os celulares possuem ótimos aplicativos que bloqueiam a luz azul da tela (e vale a pena usá-los). Eu utilizo o 'Modo Noturno', da Google Play.
A interpretação do sono
Uma vez que os horários estejam adequados com a natureza, outra coisa se torna importante: a qualidade do sono. Embora o ajuste do ciclo de dia/noite seja suficiente para resolver alguns problemas que podemos ter durante o sono, ainda podem ocorrer coisas que atrapalham o período mais importante do dia: sem descanso, não há, por exemplo, o ciclo de 'lavagem' que o líquido cefalorraquidiano (LCR) promove no cérebro, eliminando toxinas.
É isso que você ouviu: quando dormimos, o cérebro se livra de todas as porcarias ingeridas ou acumuladas durante o dia. Sem sono, sem limpeza. Sem limpeza, ocorre outro tipo de sobrecarga, mas desta vez cerebral. É como a ventoinha acumulando poeira em cima do processador do seu computador. Uma simulação foi criada apenas para observarmos a ação do LCR:
(Há um indício científico em PENG et al., 2016, que associa uma falha no sistema LCR à doença de Alzheimer. Sugiro que leiam para entenderem a importância desse ciclo, bem como a associação entre demência e sono, que é real. Pessoas que sofrem de demência, incluindo Alzheimer, se beneficiam de sono regular.)
Outras coisas também acontecem durante o sono. Observem este print de um aplicativo que utilizo para dormir:
Ele registra as fases do sono e mostra, hora por hora, quando cada fase é atingida. As quatro fases acontecem abaixo do marcador ‘sono’, sendo a mais profunda o quarto estágio, onde se vê escrito ‘sono profundo’. O marcador de tosse é curioso: ele ocorreu durante o sono REM, onde sonhamos mais vividamente. Nessa noite, tive um pesadelo; sonhei que estava me afogando em um naufrágio de um navio italiano na costa da Etiópia (nota de geografia: a Etiópia não possui costa). Acordei tossindo. Esse é o nível de precisão do aplicativo.
A primeira fase, chamada de ‘sono’, só ocorre na primeira vez que atingimos ela, e no gráfico está situada antes da uma da manhã. Consiste no desligamento gradativo do tronco cerebral para evitar espasmos enquanto dormimos. Se você já sonhou que estava caindo e sentiu um tranco, parabéns, você já vivenciou a fase 1. Se você tem dúvidas do que se trata, assista a ‘Inception’, do diretor Nolan.
Quem sofre de terror noturno pode experimentar algo chamado de ‘paralisia do sono’ nesta fase. É o que acontece quando acordamos no segundo seguinte ao desligamento total do tronco cerebral e coisas desagradáveis são vivenciadas, como alucinações.
Da primeira fase em diante, o cérebro em sono mergulha em ciclos de manutenção, incluindo o já mencionado LCR, bem como muitos outros, que vão desde a consolidação da memória até a recuperação da musculatura — motivo pelo qual 1/3 do trabalho dos bodybuilders é dormir.
E qual é o motivo de toda essa ciência se só queremos saber sobre a melhoria da produtividade? O motivo é que a maioria das pessoas deseja aumentar a produtividade sem dedicar um segundo sequer à máquina que produz. Sem ciclo, sem sono, sem produtividade. E há ainda as pessoas que irão gastar quantias consideráveis em cursos de produtividade das quais elas próprias não conseguirão tirar proveito, pois se sentem exaustas e desmotivadas. Este primeiro momento serve para isso: preparar o colchão de espuma para o salto.
Continuando: depois que o cérebro em sono mergulha, ele emerge novamente. No entanto, essa emergência não envolve o religamento do tronco cerebral, pois a fase leve do sono é acompanhada de um 'descanso' e movimentos rápidos dos nossos olhos, o chamado sono REM (Rapid Eye Movement) — é quando sonhamos. Este ciclo de mergulhos e emergências se repete algumas vezes, até acordarmos.
Se tudo correu bem, despertamos revigorados.
Do contrário, ao acordarmos fora do período estabelecido pelo sistema de sono, é comum experimentarmos lentidão motora e déficit cognitivo. Basicamente, nosso organismo se prepara para acordar umas duas horas antes, e a regulação de melatonina/cortisol começa a se alterar. Mas se esse processo é interrompido no meio, ficamos prejudicados. O cérebro interpreta isso como algum contratempo e reverte o processo, ao invés de continuar despertando.
Além disso, podemos interromper intencionalmente esse processo de um jeito muito comum: ao deixar o despertador na função 'mais dez minutos'. Isso quebra nosso ciclo e acostuma nosso organismo a entrar em mais fases do sono, tornando-nos mais lentos. O melhor despertador para o corpo é a luz do dia.
Dica de sono: baixe o aplicativo Sleep Cycle e monitore seu sono feito um diário. Esse diário serve para entender o que está dando certo e o que está dando errado. As causas da baixa qualidade do sono são muitas, mas posso citar: insônia, apneia, terror noturno e síndrome das pernas inquietas. Há também coisas mais comuns, feito roncar e acordar no processo. Procure um médico se suas fases forem irregulares demais.
Piromania gastrointestinal
“Seu dever é ficar de pé — não ser mantido de pé”
― Marco Aurélio, Meditações.
Há uma série de doenças metabólicas às quais estamos sujeitos. Os sintomas são variados, mas o mais comum é a fadiga, um cansaço e moleza que nos impedem de fazer qualquer coisa que exija um pouco mais de nós. Uma das coisas que nos coloca nessa condição e altera nosso metabolismo é a chamada ‘inflamação crônica de baixo grau’. Imaginem que todo nosso sistema digestivo e nosso hipotálamo funcionam em conjunto para sustentar outro ciclo, que é o ciclo de energia do organismo. E que essa inflamação deixa nosso organismo em um estado onde o hipotálamo, responsável pelo controle metabólico e pela sensação de fome, perde a capacidade de controlar o ciclo de ‘fome’. E mais: o fígado, então, passa a metabolizar mal as substâncias do nosso sangue e produz gordura em excesso — e então as veias e artérias começam a acumular mais gordura e envelhecem mais rápido. Não é algo bom de se imaginar a longo prazo.
O ponto é: isso pode ser evitado com uma alimentação correta e acompanhamento médico. Mas o que é uma alimentação correta em um mundo onde a informação é abundante e contraditória, os preços são flutuantes e os apelos ao desejo e aos sentidos são, no mínimo, pornográficos? É uma questão complexa. Mas possui uma resposta simples: coma aquilo que você pode rastrear. Em seguida, subtraia o que é naturalmente desconfortável para seu organismo.
Eis a ‘bula’ de um pacote de fandangos:
Agora vejamos: quantos ingredientes desta embalagem você conhece e sabe exatamente como são feitos? Pois é. Normalmente, outra pessoa diria, neste ponto do artigo, 'não estou dizendo para você nunca mais comer essas coisas, só que você deve regular'. Mas este não seria eu. Então vamos para a verdade: corte essas porcarias e nunca mais volte atrás. Sua espécie não precisa desse lixo. Sua espécie não precisa de refrigerantes e frituras. Meus pêsames.
Fui claro o suficiente? Alimentos 'primários', 'que você sabe o que é e como é feito', e que possam ser feitos na sua casa.
Obviamente, você pode ter alguma intolerância, como a intolerância à lactose. Ou pode ter alergias, mas eu não preciso dizer 'pare com isso', pois acho que seu organismo já te dá um aviso claro o suficiente. É a vida.
Pode ser, no entanto, que você faça tudo corretamente e ainda se sinta mal, lento, burro e cansado. É comum que pessoas ansiosas sintam esses desconfortos e tenham uma dieta impecável. O problema, então, não é a dieta, é a pessoa que faz a dieta. Há uma frase que gosto muito, do livro 'A Educação da Vontade':
'Não tolere nem o semi-trabalho, nem o semi-descanso'.
Eu poderia parafraseá-la da seguinte forma: 'não tolere nem a semi-refeição, nem a semi-digestão'. Há pessoas que comem rápido, e outras que comem muito, ou vão se deitar em seguida. Há quem faça as três coisas e depois estranhe como desenvolveu esofagite erosiva, hérnia de hiato e outros horrores gastrointestinais.
Mas diagnosticar o problema não é a mesma coisa que resolvê-lo. Talvez você simplesmente não saiba como se comportar enquanto come. E nem consiga ter controle, mesmo querendo mudar seus hábitos alimentares. Deixe-me contar algo:
A terapia através da brutalidade
Ouça isto: Uma paciente reclamava muito dos ataques de pânico e terror que o filho dela tinha por causa de um suposto monstro embaixo da cama. E não via meios nem remédios de resolver esse problema, nem queria medicar o menino. É complicado, mas nós realmente não devemos medicar uma criança tão cedo com remédios de 'tarja preta'. Então ela decide procurar um psicanalista, que traz a criança para o divã e fica cerca de um ano trabalhando com ela, sem muitos resultados. O monstro embaixo da cama não sumia e as coisas ficavam cada vez mais tenebrosas, sessão por sessão. Então ela decide mudar o menino de psicólogo e manda ele para outro que tentava justificar os problemas do filho em face da relação da mãe e do pai. Nada foi resolvido em seis meses, o monstro embaixo da cama continuava aterrorizando o menino. Até que ela decide mudar de profissional e acha um que diz saber resolver o problema em uma sessão.
Seis meses depois, ela está passeando no shopping e acaba encontrando o primeiro médico que foi consultado. Ele pergunta: 'E os problemas com o monstro, acabaram?' — a mãe responde:
— 'Sim, em uma sessão' — o médico fica curioso e pergunta, 'Como?'
— 'Nós fomos a um terapeuta que disse 'corte os pés da cama'.
Problema resolvido.
E não é brincadeira, pois conheci um dentista que resolveu um problema severo de retração de gengiva com a mesma técnica: cortar o cabo da escova pela metade. Já tentaram aplicar força numa escova de cinco centímetros? É impossível.
Você come rápido? Acrescente cenouras cruas cortadas em rodelas ou palitos mais grossos à sua refeição. É impossível mastigar e engolir tão rapidamente um pedaço de cenoura. Ou beterraba, você entendeu. E quando você começa com elas e passa um tempo mastigando, acostuma seu organismo, dizendo 'é hora de desacelerar'. E todo o restante da refeição se torna lento: você é trazido ao presente para uma tarefa delicada, que é não engasgar.
No mais, creio que a mensagem é bem clara: alimente-se corretamente, caso contrário, o corpo parará de responder e você se tornará imprestável durante a digestão, que pode durar algumas horas. De uma digestão para outra, quase sete horas do dia podem ser perdidas.
Subindo a pirâmide do corpo
Perfeito! Então, você já sabe quais são as condições preliminares para ser mais ‘produtivo’, e não só durante alguns momentos, mas por toda a vida. Entretanto, sabemos que isso não basta para ter um bom desempenho. Entendam esses conselhos que dei até aqui como a ‘manutenção da linha de base’. Uma vez que ela esteja estabelecida, o próximo passo é construir rotinas e hábitos que levarão ao rompimento da linha superior de excelência — o lugar onde você quer chegar. Em miúdos, a boa manutenção do corpo impede ou nos protege do risco de desabar em um dia particularmente difícil. E garante que nada nos atrapalhará, vindo de dentro, em um dia desses.
O próximo passo é a rotina em si, aquele conjunto de coisas que fazemos todos os dias da mesma forma e que não podem ser de outro jeito.
Lembrem-se: as rotinas não precisam ser uma via crucis.
Não é rotina, é sadomasoquismo regrado
Lembrem do ‘não tolere nem o semi-trabalho, nem o semi-descanso’? Pois em termos de rotina, é o que mais fazemos. Mas fazemos de um jeito pior: nos proibimos de apreciar o que é prazeroso e tentamos fazer as atividades mais monótonas e desagradáveis esperando alguma recompensa na atividade mesma.
Vamos começar pelo básico: você nunca desenvolverá nenhuma rotina se pensar nela como uma rotina. Dito de outro modo: enquanto você pensar ‘droga, preciso fazer isso novamente’, nenhuma rotina será boa, nunca.
Antes de aprendermos as rotinas desagradáveis, precisamos ter um bom repertório de rotinas agradáveis. É aqui que quase toda nossa geração fracassou: as ‘rotinas agradáveis’ foram substituídas por vícios. Quais são os repertórios que nossa geração desenvolveu? Masturbação excessiva, jogos rápidos, comer açúcar demais no café, dormir mais um pouco. E a louça lá para lavar. O problema é que essas coisas deformam nosso sistema dopaminérgico, que é o sistema responsável pela visualização das recompensas. Nos tornamos seres que fogem do desprazer com prazer descontrolado, intenso e imediato.
Os responsáveis pelo nosso funcionamento são esses três: dopamina, serotonina e noradrenalina.
Eles funcionam assim:
O sistema de recompensa
Sabe essa inquietação que nos faz buscar coisas novas? Do ponto de vista do organismo, é a dopamina, um neurotransmissor que fica responsável por nos ‘fazer buscar coisas novas’. Ela é a coitada que a gente costuma culpar — sem saber — quando estouramos o cartão de crédito, assistimos vídeos de gatos fazendo gatices, comemos meia dúzia de sushis de brigadeiro, ou ainda, apostamos no jogo do bicho com o dinheiro da avó. É também a quem devemos agradecer quando corremos uma volta no quarteirão, quando levantamos da cama num salto para ir num passeio agradável, e toda sorte de gatilhos que nos impelem em direção a algo bom. A dopamina é, sobretudo, aquilo que nos impulsiona para uma recompensa, mas não a recompensa em si. Então, de forma simples, se procurarem um ‘motivo’ para fazerem as coisas que fazem, esta é a dopamina. Ela é uma seta, e também o disparo do arco.
Outra coisa é a Noradrenalina — mais um neurotransmissor — que aparece junto com a dopamina, mas possui ‘funções diferentes’. Quando liberada na corrente sanguínea, ajuda a regular certas funções cerebrais, como memória, concentração e atenção.
Percebam a dupla: o ímpeto para fazer algo e as capacidades necessárias para realizar este algo.
A última, Serotonina, é um neurotransmissor que regula o humor (e muitas outras coisas, mas aqui ficaremos com o humor, apenas) e podemos entendê-la como o final do percurso. Buscamos algo (dopamina) e na busca e realização (noradrenalina), alcançamos uma alegria (serotonina). Este é o modelo básico, bem simplificado.
Caso se interesse pelo estudo de neurociências, há uma indicação especial para você no fim deste artigo.
Voltando à rotina
Então o que vemos hoje em dia é uma penca de pessoas com o sistema de recompensa todo lascado, que não conseguem mais ‘extrair’ prazer das pequenas coisas. Mas as pequenas coisas são as nossas portas de entrada para as rotinas agradáveis, aquelas que são essenciais para que nós consigamos partir para rotinas mais pesadas. Elas deveriam ser o que há de mais feliz em nossa vida.
Pensando em termos de ‘neurociências’, pode acontecer de a pessoa ‘ter vontade/ideia de fazer algo’ mas não sentir ‘ânimo’ para fazê-la. Isso é especialmente verdadeiro em caso de pessoas que ‘danificaram’ o sistema de recompensa. O que acontece é que quando a dopamina é disparada, também temos um disparo de noradrenalina em seguida, ou ao mesmo tempo. Mas nem sempre a dopamina será disparada diante da apresentação de noradrenalina. E, nesses casos, um dos efeitos da noradrenalina é a euforia e a ansiedade — ficamos travados, ansiosos e não conseguimos fazer o que precisamos. Ficamos dispersos, muito dispersos.
Do ponto de vista dos vícios, vocês já devem ter reparado que uma pessoa adicta prefere, por exemplo, o crack do que qualquer outra coisa. Do ponto de vista da execução das tarefas diárias, o que não faríamos se preferíssemos estudar do que qualquer outra coisa? O mecanismo é o mesmo e um esportista, um solista e um adicto possuem o mesmo cérebro, utilizado de formas diferentes.
Será que não estamos matando os sonhos, os impulsos e as carreiras das pessoas quando dizemos ‘você não vai dar em nada, largue essa porcaria e procure um trabalho?’. Eu tenho certeza que sim, sobretudo para as pessoas que ainda não possuem força total para seguirem seus sonhos, as crianças e adolescentes.
VOLTANDO À ROTINA, FOCO, PELO AMOR DE DEUS
A verdadeira rotina, a rotina derradeira, é aquela que nos permite pensar assim:
‘Isso que eu fiz agora é tão bom, mas tão bom, que eu sou privilegiado, pois amanhã poderei fazer novamente, e ter os mesmos resultados prazerosos. Eu poderei aproveitar, pela eternidade dos meus dias, todos os dias, a mesma coisa, a mesma beleza, o mesmo sabor, a mesma alegria… todo. santo. dia.’
Vou dar um exemplo do que é essa rotina (para mim): é acordar antes do sol, tomar água, passar um bom café — sem a menor pressa do mundo — e ver a casa toda com aquele aroma, feito o poema de Borges, "Camden 1892" (https://www.poeticous.com/borges/camden-1892), enquanto os primeiros raios surgem. Então eu sento diante do computador, ouço uma partita de Bach e começo a anotar minhas ideias para os trabalhos e textos futuros.
E por pior que o dia seja, isso compensa ter acordado. Amanhã tem mais.
O toque de mágica acontece quando eu percebo que isso é tão bom, mas tão bom, que vale a pena dormir mais cedo (programar o dia), senão acordo depois das cinco e meia da manhã (sono desregulado), no dia seguinte; nessas ocasiões fico ansioso e como mais (alimentação e stress), e me torno imprestável. Eis que acordar cinco e meia da manhã não é mais um inferno, mas é a melhor parte do dia. E lavar a louça do café não se torna outro inferno, mas um ritual de limpeza. Em termos práticos, isso se tornou melhor que dormir até as oito da manhã — quentinho e confortável.
Sem que você, leitor, descubra o ‘eterno retorno’ do hábito simples, da rotina de prazer, nenhuma rotina realmente chata conseguirá ser instaurada. Você precisa achar um único momento do dia que possa ser rotina, e é só, para começar. Pode ser qualquer coisa que dependa apenas de você, e possa ser feita todos os dias — mas acima de tudo, precisa te dar algum prazer.
O que está por trás dessa ideia é a apreciação de estágios diferentes que na escalada de nossas atividades, das mais simples para as mais complexas, se tornarão hábitos, de acordo com as potencialidades que nossos neurotransmissores nos oferecem. Este primeiro momento na formação da rotina lida com um tipo específico de recompensa: a imediata. O olor do café e dos periódicos…
Na década de 90 a falecida MTV passava ininterruptamente clipes musicais, e os jovens amavam isso. Tanto amavam que deixavam de lado as atividades de casa para assistir programas feito ‘Piores Clipes do Mundo’. Mas havia um problema: não era uma TV com uma receita tão alta, de forma que não podia comprar toda grade de exibição, e o acervo de clipes não era infinito. Isso praticamente obrigava a emissora a sair do ar durante algumas horas do dia, e exibir aquela tela com ruído branco. Mas o ruído era horroroso, e a emissora teve uma ideia muito inteligente, que poderia ter se tornado genial, se conhecesse um pouco de neurociências e tecnologia:
Nada melhor do que dar um bom conselho ao invés de exibir a famosa tela cheia de cores, sem dizeres. Entretanto o conselho nunca funcionou. A tendência das pessoas era simplesmente trocar de canal. Qual o sentido?
Recompensa atrasada. Essa é a resposta. Trocar de canal nos dá, imediatamente, uma sensação boa, que é o efeito caça. Esse efeito, que trouxemos da nossa história de evolução, faz com que nós nos empenhemos em uma atividade cuja recompensa pode ser boa. Ler um livro, por outro lado, exige uma série de comportamentos intermediários, ajustados ao estado corporal propício. Não é possível ler eufórico, sentado de qualquer jeito, com interrupções e chamadas constantes à nossa atenção. É mais fácil trocar de canal do que aguardar todo aquele tempo demorado de ‘engatar uma leitura’. O atraso na recompensa não favorece, em um mundo de estímulos intensos, os estímulos mais simples, de longa caminhada.
Um adendo: você acabou de descobrir, se inferiu corretamente, como o Instagram funciona, também o Ifood. E, vejam vocês, a pornografia. A verdade é que nós já vimos mais fotos de comida, lugares bonitos e gente pelada que todos nossos antepassados juntos. Eles caçavam (com armas, expedições e galanteios) na natureza, e nós caçamos virtualmente. O problema aqui é que usamos de forma errada esse mecanismo biológico que nos ‘impele’ a fazer algo. E há muita gente lucrando com essa ideia virtual, muita mesmo. As pessoas já pensam duas vezes antes de levantar da cadeira e ir ao mercado, quando o próprio celular fornece acesso ao mercado. Ou dar flores para a cremosa? Há milhares de sites que fornecem catálogos e mais catálogos de cremosas que não exigem sequer um bom dia — arrasta pro lado. Como competir?
Como se desplugar de algo que esgota nosso sistema dopaminérgico? Eis que há uma resposta, baseada num estudo curioso, feito com drogas e dinheiro.
Plata o plomo?
Há um psicólogo e psiquiatra chamado Carl Hart, um verdadeiro gênio dos experimentos, que testou o que é chamado de ‘limite dopaminérgico’. Ele fez um experimento baseado numa premissa: as pessoas cujos sistemas dopaminérgicos são altamente estimuláveis tendem para dois tipos de comportamentos: ou alta performance, ou fundo do poço. Uma pessoa cujo cérebro ‘funciona’ desse modo será muito eficaz no seu trabalho, ou se afundará em drogas, talvez crimes. Dois polos de um mesmo sistema de funcionamento extremo: recompensa, coisas novas, mais, mais.
A percepção de Hart foi a seguinte: e se eu separar em dois grupos e alterar as consequências, qual resultado terei? E foi o que ele fez, dividindo dois grupos de viciados em metanfetamina. Ao primeiro, ofereceu cinco dólares em drogas ou cinco dólares em papel. Ao segundo, cinco dólares em drogas ou vinte dólares em dinheiro.
O resultado foi bastante claro: no primeiro grupo o resultado foi 50%-50%. No segundo grupo, o de 20 dólares, o resultado foi 20%-80%.
O resultado foi bem claro. Quando falamos em recompensa, ganha a maior. E, ao mesmo tempo, nos coloca outro problema, de ordem prática: qual recompensa pode substituir a recompensa de um Ifood, de um Instagram, de um site desses que faria sua mãe se envergonhar?
Venda a TV e compre livros, ou faça seus livros serem mais interessantes que o televisor.
Gostamos das soluções elegantes. Uma ideia que possui um belo funcionamento é a de utilizar filtros nas coisas que estão concorrendo com nossa atenção. Eu gosto de um termo vindo dos jogos que é o ‘nerfar’. To Nerf, em inglês, significa ‘tornar algo menos eficiente’. Já recomendei algumas vezes que as pessoas colocassem seus celulares em modo ‘grayscale’. É uma solução prática para todos os aplicativos que capitalizam chamando a atenção, e fazem de forma gritante. Outra boa opção é usar bloqueadores de sites indesejáveis, ou redes sociais. Alguns são bem eficazes nisso, como o StayFocusd. Entretanto, nenhum deles funcionará se sua vontade de ver besteira for maior. Lembrem-se: dopamina e noradrenalina.
Por outro lado, há coisas que simplesmente não podem ser nerfadas. Vejam vocês o caso dos vícios. Embora aqueles que abusam de substâncias enfrentem o problema da ‘homeostase’— é o que chamamos de resistência, onde a pessoa precisa usar mais da mesma dose para ter o mesmo efeito — não há como simplesmente tornar as drogas menos apelativas.
Neste caso, o melhor a se fazer é tornar as recompensas mais intensas (como Hart fez), caso seja possível. Ou subir um nível.
Para além da recompensa imediata
Há limites claros na ordem de estímulos recompensadores. Garanto que um belo alface não é tão apelativo quanto o mais tosco dos doces. Nem uma leitura sobre técnicas de poda de bonsai será mais interessante do que ver o menino Neymar em campo. Piadas (nem tanto) à parte, como competir contra hábitos tão bem estabelecidos e de intensidades potencialmente insuperáveis?
Visualização. Deixei uma pista lá em cima quando falei sobre o ‘efeito caça’. Não disse que achar o canal de televisão correto é a recompensa, mas o próprio ato de procurar, função verdadeira do sistema dopaminérgico. Pensem comigo: é a pornografia que nos estimula ou o ato de procurar algo novo? É a comida ou procurar algo que pareça saboroso e barato? É realmente achar o que se procura na roleta do Instagram ou o simples ato de arrastar? É a segunda opção, em todos os casos, o que inclusive explica a resistência: cada vez procuramos algo mais forte. Vocês já viram essa frase um milhão de vezes quando leram sobre vícios, mas talvez não tenham se tocado de que o elemento principal é a procura, não o objeto do vício.
Vamos refazer a pergunta: o que é melhor, do ponto de vista da recompensa? Aliás, o que é a recompensa?
A ratolândia e as Olimpíadas
Em 1970, o psicólogo canadense Bruce Alexander estava inquieto com os estudos sobre o uso de drogas, que até então eram conduzidos com ratos e demonstravam que o uso de drogas estava na natureza da própria droga, portanto, deveriam ser proibidas. Todos os estudos davam o mesmo resultado, a saber, que sempre que um rato se tornava viciado em uma droga, não havia volta. Estava danificado para sempre.
Mas algo inquietava Bruce, que percebia não uma conclusão absoluta, mas um erro metodológico grotesco: os ratos eram dopados, colocados em gaiolas e implantados com um tubo direto na corrente sanguínea, de onde recebiam cocaína. Após algum tempo, os ratos preferiam a cocaína em detrimento de qualquer coisa, inclusive água. Morriam dias depois, de inanição e dopados.
A sacada foi tirar os ratos desse ambiente deprimente e colocá-los em uma verdadeira Disney de ratos. Ele construiu um ecossistema de ratos, 200 vezes maior do que as gaiolas, com túneis, cores e, mais que isso, interação entre os sujeitos experimentais, que eram livres e não passavam por nenhuma tortura.
O índice de adicção caiu em 20 vezes, para todos os ratos, em qualquer momento do experimento. Quando os animais ficavam isolados, os níveis de dopamina caíam para abaixo do aceitável. E as drogas, como bem sabemos, são estímulos intensos para o sistema dopaminérgico. Essa foi a descoberta de Bruce.
A recompensa é aquilo que o organismo entende como prazeroso, e o entendimento pode ser manipulado, inclusive por pensamento. Eis a terapia.
Obviamente, a pesquisa de Bruce também possuía falhas, sendo a principal delas supor que o ambiente é o fator real do vício. Não é assim que a psicologia enxerga a adicção em 2021, e há outros fatores envolvidos, cada qual com sua porcentagem de influência. Mas serviu como contraposição ao que se sabia em 1970. E acrescentou uma discussão interessante: como o sujeito enxerga aquilo que é prazeroso para ele e como a reflexão altera o que é entendido como prazer, dependendo do contexto.
Os atletas são seres estranhos, e em nada se parecem com ratos, pois passam anos fazendo atividades repetitivas, monótonas e dolorosas apenas para ganhar um quarto de segundo numa prova de 100 metros, ou alguns centímetros de bíceps. Sob o custo de interações sociais, amorosas, financeiras e alimentares, praticamente abandonam a vida cotidiana — e é por isso que o patrocínio é importante para eles. Feito para nós, que precisamos de um ambiente organizado para funcionar, eles precisam ter as ‘costas salvas’. Tudo isso para que possam um dia ganhar uma medalha de ouro numa Olimpíada.
Juntando os dois casos, temos um ótimo meio de entender como funcionam as recompensas. Elas podem ser únicas, concentradas e situadas em um futuro distante, ou podem fazer parte de uma cadeia intrincada de comportamentos, cuja intensidade individual de cada uma é pouca, mas no conjunto são simplesmente irresistíveis. As recompensas normais que vivenciamos todos os dias são desse segundo tipo. Um pouco de conversa, um pouco de paquera, um pouco de compras, um pouco de descanso, um bom café na pausa do trabalho. Mesmo que uma cadeia de recompensas encontre um evento estressor, ela não se rompe — isto é, se for bem construída e não houver um evento intenso e traumático no meio dela.
Outra coisa é o objetivo fixo, suficientemente bem delimitado. Um Oscar, uma menção no Livro dos Recordes, talvez o melhor solo de um concerto de violoncelo. Aqui entram os atletas e a produtividade propriamente dita.
Sem que sejam feitos exercícios contextualizados de visualização, nosso foco se perde. Simplesmente não fomos feitos (enquanto animais) para isso. Todas as ferramentas que temos para buscar algo são do domínio do imediato, e o longo prazo não ajuda muito. Pensem bem: o período de vida médio do ser humano já foi de quarenta anos. Descontando infância e adolescência, sobravam uns vinte, talvez. Hoje, em pleno 2021, nosso tempo de contribuição em poupança está em torno de 35 anos, e já temos uma longevidade acima dos 70. Há exatos 100 anos, nossos fisiculturistas se pareciam com isso:
(o ancestral em comum entre você e o CBUM)
Muitas coisas mudaram desde então, em termos científicos, de treino, de alimentação, de hábitos e, acima de tudo, de perspectivas. Saímos de um porte que é, convenhamos, comum hoje em dia, para um Arnold, e então para um CBUM.
Visualização
O homem alcança a realidade no exato momento em que aprende a projetar. Isso é visualização, a capacidade de manter na cabeça uma recompensa de longo prazo, enquanto se beneficia das pequenas alegrias imediatas. É algo aprendido e pode ser otimizado.
É isso que ensinarei no próximo artigo, tão longo quanto este — e amarraremos mais algumas pontas — se Deus quiser. Tudo que cobri até aqui serve de ajuda para a base, e eu garanto que vocês verão mudanças se tentarem seguir algumas das dicas e meditarem profundamente sobre este modo de ver a vida.
O próximo não tratará sobre a linha de base, mas sim sobre como romper o platô da mediocridade e alcançar a estrada da excelência.
Brian.
De vez em quando, volto a este texto para me lembrar de que preciso viver como gente! Esse é um dos meus favoritos!
Brian, esse artigo teve continuação?