Junto de Canção Crônica e Canção Limítrofe, Canção Saturnina fala de um monte de coisas. É da mesma série de transtornos e afins. E, assim como as outras, vou deixar vocês adivinharem sobre o que se trata. Ou melhor, vou deixar uma chave de interpretação: pode ser pensado como distimia, ou algo mais…
Tentei pensar em algo cansado, massivo, repetitivo ao ponto da náusea. Algo que parecesse não ir pra lugar algum, e que fosse perdendo o centro, a unidade. Não sei se obtive êxito. Deixo pro leitor decidir também.
Eis o poema, sem delongas:
Canção Saturnina
O escuro dos meus medos tem dois olhos de pirita: quando alegro-me, ele chora, quando calo-me, ele grita, e me espreita das paisagens que inventamos por anseios: essas terras prometidas, habitadas de entremeios, que tomamos pra nós mesmos porque nosso é o que roubamos, e no acúmulo dos anos somos só o que acumulamos: a ferrugem que se esconde nas areias de um espelho, um sangrar de clepsidra sem frequência nem critério, e monjolos combalidos, com pilões secos, vazios, na esperança de moverem-se pelos grãos, não pelos rios, como arados de fio cego, aterrados em seu sulco, ou peneiras de garimpo já deixando passar tudo; é vazio, de todo modo, quanto pesa o nosso peso, povoando, entre os saques, tempos mortos e indefesos: São as máscaras e moldes que fingimos ter herdado, de canções inexistentes que não servem nem de fado, mas que cantam, de algum canto, pedras duras e cansaço, que deitamos — sem escolha — entre os gestos e o fracasso: É o escuro de meus medos, me visita feito um pai, senta à mesa, não me olha, me domina sem um ai… e as fronteiras do entremeio sismos, lagos e caldeiras, vão perdendo seus contornos, entre as coisas verdadeiras: relógios sem sol repousam como mortos em seus marcos, sou pego no aço do vento, não ouço o som dos meus passos… Quando acordo o todo é escuro, numa fome quase infinita e esse brilho nos meus olhos chora tanto quanto grita, vai escorrendo pelos traços duma máscara de cera; e o espaço entre as coisas é de sonho, não de espera... os contornos já se foram, não há vulto, não há traço: mas o corpo ainda repete as ausências desse espaço.
É a primeira versão.
Brian.
"e no acúmulo dos anos
somos só o que acumulamos."
Memorável.
É um belo ritmo, gostei bastante.