Uma vida inteira não é suficiente para que possamos experimentar a totalidade da condição humana, em sua integralidade. E nem é desejável que seja assim, pois grande parte dessa condição é horror. Claro, há toda beleza e bondade, mas oxalá pudéssemos apenas ler romances de guerra, ao invés de vê-la se aproximando de nós, dia após dia.
É para isso temos a arte e, sobretudo, a literatura.
Na literatura nos são apresentados os meios de usufruir a vida de mil vidas, para que possamos aprender as mais dolorosas lições, ao custo (agradável) de não vivê-las pessoalmente.
Algumas obras podem ser leituras dolorosas, porém imagino que ser apunhalado pelas costas, ou definhar com a traição suposta da mulher amada, é bem pior. É, se for ver, uma troca bastante boa: sofrimento na pele por beleza no sofrimento.
Essa troca oportuna nos dá um impulso importante para que continuemos vivendo com sentido, ou, ao menos, com compreensão do mundo e da vida que nos cerca: a literatura ajuda centralizar algo que poderia ser apenas um feixe de imagens batidas, isso que chamamos de vida real.
Somos seres de sentimento, e parte de nossas vidas consiste em procurar neste fundo afetivo das coisas humanas as raízes e razões daquilo que fazemos. Saber movimentar as chaves deste impulso é nos mantermos sempre motivados.
A literatura é uma forma de partejar essas chaves.
É curioso pensar nisso: todos nós aprendemos pela experiência, mas também escrevemos livros sobre como amar, e criamos placas com inscrições e símbolos que vão desde “cuidado, cão bravo” até “propriedade privada, não pise na grama”.
Nossa instrução no mundo não ocorre apenas pelo contato direto com as coisas.
Se aprendêssemos somente pela experiência, seriamos levados a perceber o risco da ruína rapidamente, pois nem toda experiência se propaga de forma inofensiva. As coisas mais perigosas do mundo tratariam de dar cabo de nossa espécie rapidamente. Nossa espécie, notavelmente, daria (ou dará) cabo de si mesma quase na mesma velocidade.
A arte, a literatura, os romances, poesia e teatros, são uma espécie de aprendizagem alternativa das emoções, do nosso sentimento de mundo, através de regras, exemplos, demonstrações, ou recriações de experiências diretas.
O que a arte literária faz, enfim, é viver em nós uma vida para que consigamos extrair conclusões necessárias para nossas escolhas e ações. É nos poupar do horror real através do horror ficcional.
E não é exatamente assim que operaram (e operam) os contos de fada e afins — os cautionary tales —, muito antes da literatura formalmente impressa ganhar o mundo?
Um bom livro pode produzir efeitos que a melhor das terapias só sonha.
E um livro ruim, bem, é capaz de infantilizar o mais adulto dos homens.
Daí a importância de selecionar, curar e propagar os melhores.
Uma questão de lugar
Uma experiência que todos nós temos, em alguma medida, é a de presenciar situações tão estranhas, intensas, até ridículas, ao ponto de estranharmos como algumas pessoas conseguiram se enfiar em dramalhões que nós mesmos resolveríamos em dois segundos.
Mas a experiência logo é contrabalanceada quando percebemos que nós temos nossos próprios dramas e consideramos que ninguém pode resolvê-los a não ser nós mesmos, e que, muitas vezes, estes dramas parecem não ter solução. Irônico. Esquecemos que alguém, em algum lugar, se comporta de forma a pensar que “resolveria este dramalhão em dois segundos”. É uma questão de ponto de vista.
É uma percepção errada, também, de qualquer modo. Vou exemplificar isso através de nosso querido personagem, Hamlet. Recordemos os traços:
O príncipe negro é pensativo, perplexo, reflexivo em suas reações.
Mas essas características trágicas do personagem, aquelas que contribuirão para a sua própria danação, estão desde o começo entrelaçadas com as próprias qualidades: enxergar intenções e subterfúgios de longe; não são essas as marcas registrada do doce príncipe? De tal modo que, pensando bem, ele seria o cortesão perfeito…
A capacidade de armar longos planos, e de seguir com eles em um ambiente inóspito, dialogando e tramando sem ser descoberto, é o real caráter do personagem.
Este é o lugar dele, de certo modo. É o lugar onde o drama toma palco.
Mas observemos alguém diametralmente oposto: Otelo.
A despeito de sofrer todo tipo de preconceito por sua posição social — muçulmano, negro, forasteiro —, não se pode negar o caráter nobre de sua personalidade. Sua inteligência e confiança nos assuntos militares não são capazes de eliminar sua insegurança social, mas, ainda assim, contra a maré de adversidades, ele consegue manter-se calmo sob pressão. Além disso, lidar com a própria insegurança diante de uma traição suposta, por tempo prolongado, é um feito para poucos.
Agora imaginemos, por um átimo de segundo, uma realidade paralela em que os personagens sejam trocados de lugar:
Que Otelo, tendo se livrado das garras de Iago contra Cassio, e então em paz com Desdêmona, fosse cair (logo nos primeiros versos) às ameias do castelo de Elsinore. Que ele de fato visse o espectro do pai morto, e tivesse a mínima certeza de que a trama real da corte culminou na usurpação da coroa: de pronto, puxaria a espada na frente de todos, mataria o usurpador, e em seguida todos que concordassem com o falso rei. Paz reestabelecida. Em apenas um ato teríamos novamente a Dinamarca reconquistada (forte como sempre foi), e nada de Fortinbras às fronteiras.
A nobreza e a habilidade militar, o senso seguro de dever, elementos que no local original de sua tragédia seriam drama, aqui são imprescindíveis: Hamlet, podemos concluir, deveria ter sido Otelo.
Por outro lado, na mesma realidade paralela, fora de sua clausura e hábitos negros, o príncipe se desse pelas vielas de Veneza, e encontrasse tanto Cássio quanto Iago: veria num e noutro o que eram realmente, e, antes que as tramas pudessem ser colocadas de pé, estariam desarmadas.
Iago não passaria despercebido, e qualquer estratagema que bolasse não duraria meia sobrancelha arqueada. Hamlet, sozinho, faria Iago entregar-se ao desespero, apenas por mostrar para ele mesmo, e para todos ao redor, sua verdadeira natureza.
Não há pessoa que sobreviva imune à presença daquele que, perscrutando dolorosamente a própria alma, leia qualquer outra com a naturalidade de quem abre um jornal. Otelo, sem dúvidas, deveria ter sido Hamlet.
De nossas realidades habituais, assistiríamos ao paradoxo: se os lugares fossem trocados, nós não teríamos as melhores obras que o ocidente já produziu, na palma de nossas mãos.
Pois é este o efeito, afinal, da arte em nossas almas. Nós que devemos ser, leitura após leitura, o Hamlet em Otelo, e o Otelo em Hamlet. É este o processo mágico, alquímico, intelectivo, estético, e muitas outras coisas, que devemos deixar ser empreendido em nós.
Mas também não podemos deixar de notar uma coisa: é justamente na literatura que este processo se torna possível. A realidade, muitas vezes, não nos colocará no lugar que será melhor para nós, o lugar em que nossas habilidades ou traços servirão como uma luva.
Daí que digo que é uma percepção errada, na realidade, achar que podemos resolver em segundos a vida dos outros, ou que os outros poderão resolver em segundos a nossa.
O que nos resta, de fato, é que, embora isso seja possível em Hamlet e Otelo, só o é porque a literatura, em seu modo de ser, permite. É imaginação, afinal.
Consequentemente, a grande conclusão é que a literatura, permitindo em si mesma o dom da imaginação, capacita, em nós, uma magia ainda maior: sermos todos nossos personagens, ou o contrário destes, em nossa própria vida real. Não como farsa, mas como educação das possibilidades das ações, da direção dos afetos, da ordenação dos dois mundos, o externo e o interno.
Aí sim, neste sentido, podemos ser Otelo na vida de tantos Hamlets, e Hamlets na vida de tantos Otelos, e mais, Otelo e Hamlet em nossas próprias vidas.
Isto é o poder da arte.
Talvez seja essa a grande tristeza da vida de quem não lê: ver a vida apenas com os próprios olhos. Seguir ileso de complexidade e cego de contradições. Esquecer que todo caminho pode ser, em si, sempre outro. E jamais ser salvo pela percepção de que podemos olhar nossas próprias vidas como um autor olha para um personagem. Ser capaz de operá-la em cena. Entender que não há nada mais real na humanidade que o recorte da imaginação interpretativa.
Brian.
Acho que foi Adorno (ou um outro escritor citando ele, não importa) que disse "A arte concede ao sofrimento uma linguagem", lembrei da frase ao ler seu texto.
Ótimo, demando uma série a partir desse ensaio